A Paris viva em O Corcunda de Notre Dame

10:06 Carolina Carettin 2 Comments


O Corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, faz parte do Projeto Lendo o Mundo.

Escrito em 1830, o Corcunda de Notre Dame se passa na Paris medieval no ano de 1482. A trama começa com a comemoração do Dia de Reis (6 de janeiro) e da Festa dos Bufos - bufo é mais conhecido como bobo da corte, aquele que entretém o rei e a rainha.

Aos poucos vamos nos habituando ao cenário e aos personagens que Victor Hugo nos apresenta. Conhecemos Gringoire, filósofo e escritor da peça que está sendo apresentada naquele dia e, mais à frente, Quasímodo, o sineiro da Catedral de Notre Dame. O sineiro foi deixado em frente à Catedral quando tinha uns quatro anos e foi criado pelo arquidiácono Claude Frollo desde então.

Nesse mesmo dia em que começa a história, o leitor também conhece a cigana Esmeralda - sempre em companhia de sua cabra Djali -, que acaba despertando sentimentos em Quasímodo, no arquidiácono e no capitão Phoebus de Châteaupers (esse último encontro acontecerá mais tarde).

"- Sabe o que é a amizade? - perguntou ainda.
- Sei -  respondeu a egípcia. - É ser irmão e irmã, duas almas que se tocam sem se confundir, os dois dedos da mão.
- E o amor? - continuou ele.
- Ah! O amor! - sua voz tremeu e o olho resplendeu. - É ser dois, sendo um só. Um homem e uma mulher que se fundem como anjo. É o céu." (p.136)
O único personagem masculino que não se atrai por Esmeralda é Gringoire, que acaba se afeiçoando mais à cabra do que à moça. Aliás, ouso dizer que, de todos os homens da história, Quasímodo é o mais humano - ironicamente e propositalmente, já que ele é sempre retratado como animal por causa de sua feiura. Frollo e Châteaupers "amam" a cigana, mas não fazem absolutamente nada para que ela não sofra as consequências de atos e tramoias que os dois realizam. Frollo, principalmente, é muito intenso em tudo o que faz, não pensando em tudo o que poderia acontecer àqueles que ama. Uma ótima análise sobre essa relação entre os personagens é o artigo "A paixão do clérigo Frollo como fator determinante para a violência: um estudo comparado entre o livro O corcunda de Notre-Dame e o filme de William Dieterle", de Antônia Pereira de Souza.

Charles Laughton (Quasímodo) e Maureen O’Hara (Esmeralda) em adaptação de 1939.

Outro ponto muito importante da obra de Victor Hugo é que a própria Catedral de Notre Dame é um grande personagem da história, se não a protagonista. Toda a trama se passa dentro ou próximo à Catedral. O autor discorre sobre arquitetura, sobre as mudanças que vêm ocorrendo ao longo do tempo no edifício e da importância da Catedral para a cidade de Paris (vou falar sobre a Paris medieval logo abaixo). Uma dica para você que vai ler - ou que já leu - é que com o Street View do Google Maps é possível entrar na Catedral e também subir até a torre e ter uma vista maravilhosa de Paris.

Conversa com o leitor
Duas das características que mais gosto, seja nos livros de Victor Hugo ou em qualquer outro autor, é 1) o fato de ele conversar com o leitor em alguns momentos e 2) as voltas que a história dá e a forma como os personagens são conectados.

Bom, o diálogo com o leitor dispensa explicações. Para mim, esse recurso aproxima quem lê da história, parece que estamos realmente vivendo aquela situação:

"Como eles, deixemos Jehan dormindo aos cuidados das benfazejas estrelas e continuemos também a segui-los, se o leitor assim permitir" (p. 363)
Já as voltas as quais me refiro, aparecem quando o autor quer apresentar um novo personagem, um novo lugar, e precisa fazer uma ligação entre o que já conhecemos e o que está sendo apresentado. Por exemplo, Victor Hugo não conta a história de Quasímodo de forma direta: "Quasímodo nasceu... chegou a Paris por causa disso etc". Isso não quer dizer que o autor enrole ou encha a história com detalhes desnecessários. Vamos saber a história do Corcunda da Catedral de Notre Dame através de uma conversa entre três mulheres que, no início, parecem não fazer parte da história e nem ter importância para a trama. Aliás, tudo o que ele descreve tem um porquê e, mesmo que as descrições sejam um pouco cansativas, vale a pena. 

A Paris medieval
Na introdução, o autor explica que alguns capítulos que tratam sobre Paris e sua arquitetura foram inseridos apenas na terceira edição. Há a possibilidade de pular esses capítulos sem que haja interferência grande na trama, porém por que pular Victor Hugo, não é?

Há um capítulo em que Victor Hugo nos apresenta Paris num sobrevoo. A cidade é um personagem vivo e ativo do livro, assim como a civilização e as transformações que faz ao longo do tempo. Para quem nunca esteve em Paris, o livro é como uma passagem que compramos no aeroporto. O leitor consegue se sentir na cidade e captar a atmosfera do lugar.

O autor ainda explica que Paris é dividida em três áreas: a Cité (ilha onde está Notre Dame), a Universidade (onde está Sorbonne) e a Cidade (onde fica o Louvre). Pertenciam, respectivamente, ao bispo, ao reitor e ao preboste (um oficial real).

Mapa de Paris medieval: Cidade, Cité e Universidade. (Foto: Conexão Paris)

A Cidade e a Universidade tinham seis portas cada uma que eram fechadas durante a noite. A Cité tinha cinco pontes que ligavam-na às margens. Essas pontes tinham casas sobre elas, também retratadas no livro.

Com informações do Conexão Paris.

Edições e adaptações
A editora Zahar tem duas ótimas edições da obra, uma normal e uma de bolso, ambas ilustradas, mas somente a edição normal tem comentários.

Já tinha tentado ler pela edição da Martin Claret, aquela de bolso, mas não passei do primeiro capítulo. Talvez pela tradução, talvez pela diagramação. Vale a pena dar uma olhada nas edições disponíveis antes de sair comprando.

O romance teve três adaptações para o cinema: em 1939, com direção de William Dieterle e Maureen O'Hara como Esmeralda; em 1996, adaptado pela Disney; e em 1997, com direção de Peter Medak e Salma Hayek (Frida) e Mandy Patinkin (Homeland) no elenco.

Recomendo, também, a ótima resenha da Vevs Valadares sobre a obra.

Outros títulos franceses
A Espuma dos Dias, de Boris Vian (Confira esse livro na lista dos melhores de 2015, indicados pela equipe do Literatortura).
Os Miseráveis, de Victor Hugo
O Bosque das Ilusões Perdidas, de Alain-Fournier
Coração Apertado, Três Mulheres Fortes, de Marie NDiaye
Porcaria, O Nascimento dos Fantasmas, de Marie Darrieussecq
Amanhã, numa boa, de Faïza Guene
Zazie no metrô, de Raymond Queneau
A Vida Modo de Usar, As Coisas, de Georges Perec
Peixe Dourado, de Jean-Marie Gustave Le Clezio
14, Correr, Vou Embora, de Jean Echenoz
A Arte Francesa da Guerra, de Alexis Jenni
O Sermão sobre a Queda de Roma, de Jérôme Ferrari
Submissão, de Michel Houellebecq

2 comentários:

Emanuel Antunes disse...

Concordo imensamente com o "por que pular Victor Hugo" kkkk e a análise ficou ótima, tudo isso de uma Paris viva é bem forte nos livros de Hugo mesmo. ☺

Obrigada, Emanuel! :)