Cegos que, vendo, não veem

09:33 Carolina Carettin 0 Comments

Ensaio Sobre a Cegueira faz parte do projeto Lendo o Mundo.

Num semáforo, o primeiro carro da fila espera que o sinal mude para verde. Quando a mudança acontece, o motorista cega. Uma cegueira branca. É tomado, então, pelo desespero. O homem grita e é acudido por outro homem que acaba levando-o para casa.
O primeiro cego, como passa a ser chamado, vai ao consultório de um oftalmologista que fica, no mínimo, intrigado com a cegueira súbita do paciente. Em pouco tempo, cegaria também o médico e o homem que levou o primeiro cego para casa. Aos poucos, a cegueira branca vai se espalhando e o governo se vê em meio a um impasse: O que fazer com os cegos? A cegueira é transmitida por um vírus? Então, os primeiros cegos são colocados em quarentena num prédio onde funcionava um manicômio.

Cegos. O aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante.
(De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz, dezembro de 1998. Discurso de Saramago no Prêmio Nobel.)

Saramago, ao não nomear os personagens, reforça a ideia da perda da identidade dessas pessoas. Não que isso busque a igualdade, ao contrário, não lhes convém guardar vários nomes: se chamam, por exemplo, por "a rapariga dos óculos escuros", "o médico", "a mulher do médico".
Mais à frente na história, os personagens começam a perder aspectos que nos caracterizam como seres humanos. Vem a fome, a falta de higiene, lutas entre os cegos que estão nas quarentenas, assassinatos.
Em meio ao caos, a mulher do médico seria a personagem principal. Ela decide acompanhar o marido quando este está sendo levado para a quarentena. A mulher não cegou ainda, mas acredita que cegará. Se isso acontece ou não, eu não vou dizer.
As outras mulheres da história também são muito fortes e interessantes. Cenas marcantes acontecem dentro e fora do manicômio onde os cegos estão isolados e constroem uma relação de sororidade e irmandade entre elas.
Está morta, disse a mulher do médico, e a sua voz não tinha nenhuma expressão, se era possível uma voz assim, tão morta como a palavra que dissera, ter saído de uma boca viva. Levantou em braços o corpo subitamente desconjuntado, as pernas ensanguentadas, o ventre espancado, os pobres seios descobertos, marcados com fúria, uma mordedura num ombro, Este é o retrato do meu corpo, pensou, o retrato do corpo de quantas aqui vamos, entre esses insultos e as nossas dores não há mais do que uma diferença, nós, por enquanto, ainda estamos vivas.

Este foi o meu primeiro contato com a escrita de José Saramago. Já tinha ouvido falar que ele não seguia as regras de pontuação ou de maiúsculas e minúsculas e isso me assustava um pouco.
Besteira. A escrita do autor é única, consegue cativar já nas primeiras páginas. Na citação acima, se percebe o não uso das regras formais e a linguagem coloquial e a poesia, que o autor consegue combinar. Outro ponto muito bom é poder ler o português de outros países que falam e escrevem na língua. Experiência parecida eu tive ao ler Mia Couto, autor moçambicano.
O livro foi adaptado para o cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles e tem Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga e Gael García Bernal no elenco.
No site Conexão Lusófona está disponível o livreto "A Arquitetura de um Romance" que revela a construção do livro contada dia a dia pelo autor nos seus diários e intervenções públicas. Uma curiosidade: a capa do livreto é de Chico Buarque.

O autor
Filho e neto de camponeses, José Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga, província do Ribatejo, no dia 16 de Novembro de 1922. Sua família foi para Lisboa quando ele ainda era criança, assim passou a maior parte de sua vida na capital.
O seu primeiro emprego foi como serralheiro mecânico, tendo exercido depois diversas profissões: desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, tradutor, editor e jornalista. Publicou o seu primeiro livro, um romance,  Terra do Pecado, em 1947.
Pertenceu à primeira Direção da Associação Portuguesa de Escritores e foi, de 1985 a 1994, presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores. A partir de 1976 passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. Em 1998, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. José Saramago faleceu no dia 18 de Junho de 2010.

Outros livros e autores portugueses:
Eça de Queiroz
Fernando Pessoa
Florbela Espanca
Vento, areia e amoras bravas e A Sibila, de Agustina Bessa-Luís
Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai, de Gonçalo M. Tavares

Equador e No teu deserto, de Miguel Sousa Tavares
A Desumanização, O Filho de Mil Homens, A Máquina de Fazer Espanhóis, O Paraíso são os Outros, de Valter Hugo Mãe (é angolano, mas sempre viveu em Portugal)
A Definição do Amor, de Jorge Reis-Sá
Fazes-me falta, de Inês Pedrosa
Morreste-me, de José Luís Peixoto
 

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