O Escolhido Foi Você, Miranda July

14:43 Carolina Carettin 0 Comments


Em 2009, em plena recessão nos Estados Unidos, a multiartista Miranda July se viu presa em um bloqueio criativo. Ela trabalhava no roteiro de seu próximo filme, “O Futuro”, quando passou a prestar mais atenção em um jornal de anúncios que chegava toda terça-feira em sua casa, o PennySaver. Foi nele que July encontrou uma forma de passar o tempo, uma vez que o roteiro não ia para frente.

Acompanhada de seu assistente Alfred e da fotógrafa Brigitte Sire, July começou a ligar para os anunciantes e marcar entrevistas. O projeto resultou no livro “O Escolhido Foi Você”, publicado em 2013 pela Companhia das Letras.

A autora fez perguntas como “Qual é a sua lembrança mais antiga?”, “Como você passa o seu tempo?”, “Quais são seus planos para o futuro?”, “Qual foi a parte mais estranha da sua vida até agora?” para pessoas com histórias de vida completamente diferentes. A primeira pessoa que Miranda entrevistou foi Michael, ex-mecânico de 60 e poucos anos, que vendia uma jaqueta de couro por dez dólares. Ao chegar ao apartamento, Miranda descobriu que Michael estava passando por uma transição e era transexual. 

“Agora, quando eu olhar para esse prédio, vou saber que Michael está lá, vivendo de sua aposentadoria, curtindo a vida e desejando apenas uma última coisa - transformar-se em mulher.”

Cada ser humano é um universo
Ao entrar em contato com essas pessoas, a autora conhecia universos novos. Cada pessoa carrega suas experiências, medos e mágoas consigo. São capazes de passar um pouco de sua vida para os outros, mesmo em um contato breve. 

Primila, que vendia roupas indianas, queria compartilhar o máximo que conseguisse sobre sua vida. Contou para Miranda sobre sua irmã que morreu de câncer e deixou quatro filhos para ela criar, dos gatos que apareceram dentro em sua casa depois de terem nascido no sótão e escorregado por entre as paredes, e de seu trabalho no hospital.

“Ocorreu-me que a história de cada pessoa interessa demais a ela própria, então quanto mais eu ouvia, mais ela queria falar.”

Entre as entrevistas, July pontua reflexões que apareceram depois daqueles encontros. São questionamentos sobre a vida, seu trabalho como diretora e artista e também sobre a sociedade conectada via internet.

O que une todos esses personagens é o fato de eles não terem computador ou acesso à rede. “Pensei que, se usassem computador, estas pessoas não anunciariam no jornalzinho, mas na internet. E isso se confirmou. Eram pessoas analógicas, talvez as últimas que existem por aí. Fico assustada com o tamanho que o computador tomou na vida de cada um, sobretudo na minha”, exprime em entrevista por Skype para a Folha de S. Paulo.

O start para esse pensamento se dá depois que ela conhece Matilda (que vendia pelúcias dos Ursinhos Carinhosos) e Domingo, seu irmão, que colecionava e fazia colagens de fotos com pessoas e objetos que encontrava em revistas, principalmente. Ele inventava uma vida nova para si a cada colagem que fazia. A partir daí percebe-se que essas pessoas despertam a curiosidade de quem está conectado o tempo todo. Quem são essas pessoas que ainda anunciam em um jornalzinho em tempos de internet?

“A maior parte da vida está off-line e acredito que sempre estará; comer, sentir dor, dormir, amar são coisas que acontecem no corpo. Mas não é impossível me imaginar perdendo o interesse por essas coisas; elas nem sempre são fáceis, e tomam muito tempo. Daqui a vinte anos, estarei entrevistando o ar, a água, o calor, só para me lembrar de que um dia eles tiveram importância.”

Joe e Carolyn
Nas duas últimas entrevistas, vemos o projeto de July se ligar com o roteiro de seu filme. Depois de visitar Dina, que vendia um secador de cabelo, a autora tem a ideia de usar as pessoas que encontrou a partir dos anúncios em seu filme. Com Dina, a experiência não dá certo, por isso Miranda decide fazer uma última entrevista com Joe, um senhor de 81 anos que vende cartões de Natal artesanais.

Ex-pintor de casas, Joe vive com sua mulher, Carolyn, há 62 anos. Os dois se conheceram no dia 4 de julho, dia da independência dos Estados Unidos, e desde então escrevem cartões um para o outro. Durante a vida, os dois tiveram vários animais de estimação. Todos estão enterrados no quintal da casa deles, onde vivem desde a década de 70. 

De olhos azuis e semblante cativante (que pode ser visto pelos leitores nas fotografias de Brigitte Sire), Joe acaba participando do filme, que estreou em 2011. Em decorrência de um câncer, ele morre pouco tempo depois das filmagens. É a ele e à Carolyn que o livro é dedicado.



Todas as pessoas com quem Miranda July teve contato durante esse período foram essenciais para o processo de criação de seu filme. A partir de suas vidas, July conseguiu extrair a essência daquele momento: pessoas desconectadas que vivem, em sua maioria, com aposentadorias ou ajuda do Serviço Social depois da crise econômica de 2008.

“Quase doeu me lembrar de que Joe e Carolyn eram parte do mundo, cercados por um número infinito de histórias simultâneas. Imaginei que aquela era uma das razões pelas quais as pessoas se casam, para fazer uma ficção que pudesse ser contada. Não eram só os filmes que não conseguiam absorver um elenco de personagens; nós também. Precisávamos peneirar a vida para saber onde colocar nosso carinho e atenção, e aquilo era uma coisa boa e doce. Mas, em conjunto ou isolados, estávamos ainda incrustados num caleidoscópio, impiedosamente variado e contínuo, até o fim do fim.”

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