Lendo o Mundo: Vozes de Tchernóbil e os relatos sobre a maior catástrofe nuclear da história

11:07 Carolina Carettin 0 Comments



Vozes de Tchernóbil faz parte do Projeto Lendo o Mundo.

Em 26 de abril de 1986, à 1h, uma série de explosões destruiu o reator e o prédio do quarto bloco da Central Elétrica Atômica de Tchernóbil, situado na Ucrânia, próximo à fronteira da Bielorrússia, país em que Svetlana Aleksiévitch, autora de Vozes de Tchernóbil, viveu a maior parte de sua vida.
Primeiro livro da autora lançado no Brasil pela Companhia das Letras, Vozes é um conjunto de relatos crus e realistas sobre os acontecimentos que se seguiram após a explosão. Svetlana começa sua narrativa com o relato de Liudmila Ignátienko, mulher de um dos bombeiros chamados para apagar o incêndio na Central. Toda a brigada saiu com as roupas que tinham no corpo, sem nenhuma proteção. Não sabiam a gravidade do incêndio. Mesmo grávida, Liudmila subornou guardas e conseguiu entrar no hospital para cuidar de seu marido. Os bombeiros foram levados para Moscou e morreram 14 dias após o acidente, devido às altas doses de radiação.
A voz feminina é muito presente no livro, tanto por conta das inúmeras mulheres que perderam seus pais, mães que perderam seus filhos, cientistas que falam sobre o assunto. São as pessoas que participaram da tragédia e ficaram. Como nas guerras, muitas mulheres sobreviveram e puderam contar suas histórias.

“A minha filhinha me salvou. Recebeu todo o impacto radiativo, foi uma espécie de receptor desse impacto. Tão pequenininha. Uma bolinha. (Suspira.) Ela me salvou. Mas eu amava os dois. Será… Será possível matar com o amor? Com um amor como esse! Por que andam juntos, amor e morte? Estão sempre juntos. Alguém pode explicar? Alguém tentaria? Eu me arrasto sobre a tumba de joelhos…”

O governo soviético não queria que o pânico se espalhasse e, assim, faltavam informações aos moradores das áreas próximas à Central. A cidade Pripyat, a quatro quilômetros de Tchernóbil, teve que ser totalmente evacuada e hoje recebe turistas que visitam os prédios abandonados e totalmente tomados pela natureza. Construída na década de 70, Pripyat era uma cidade moderna, as pessoas que trabalhavam lá recebiam um salário maior do que trabalhadores de outras regiões. Era o milagre da energia nuclear.

Grupo de liquidadores em 1988. Fonte: The Chernobyl Gallery 

Várias aldeias também foram evacuadas, inclusive fora da Ucrânia. Na Bielorrússia, com uma população de 10 milhões de habitantes que trabalhava predominantemente em propriedades rurais, foram 485 aldeias perdidas depois de Tchernóbil. Setenta estão sepultadas sob a terra.
O sepultamento de casas, entre outras atividades, era feito pelo chamados “liquidadores”, pessoas convocadas pelo governo soviético para limpar a área próxima do reator (ou nem tão próxima assim). Cerca de 600 mil pessoas foram chamadas e expostas a altos níveis de radiação.

“Enterrávamos terra na terra. (...) Ninguém podia entender aquilo. Segundo as instruções, o enterramento deveria se realizar depois de uma prévia exploração geológica, de modo que as águas subterrâneas estivessem a uma profundidade de quatro a seis metros abaixo da vala e que as paredes e o fundo da vala fossem cobertos por plástico. Mas essas eram as instruções. Na vida as coisas são diferentes, claro. Como sempre. (...)
Apontavam com o dedo:
‘Aqui, cave’. E a escavadeira cavava.
‘Qual a profundidade cavada?’
‘O diabo é quem sabe. Se aparecer água, eu largo tudo do mesmo jeito’.
Descarregavam diretamente nas águas subterrâneas.”

Átomo da guerra e átomo pacífico
O acidente em Tchernóbil aconteceu alguns anos antes da queda da União Soviética (1991), o que contribuiu para que algumas pessoas pensassem que a explosão no reator foi feita por agentes da CIA, por exemplo.
Uma ideia que contribuiu para o surgimento de teorias da conspiração foi a de que o átomo da energia nuclear era diferente do átomo da bomba atômica. A informação chegava a pessoas mais instruídas. Os camponeses das aldeias próximas à usina não sabiam que se tratava da mesma substância e dos perigos que uma explosão na usina poderia causar.
Para muitos moradores que foram evacuados a informação de que suas casas estavam contaminadas não fazia sentido. Para eles, não ver a radiação significava que ela não existia. Até hoje algumas pessoas moram em aldeias próximas a Pripyat, apesar dos altos níveis de radiação.

“Mesmo envenenada pela radiação, esta é a minha terra. Não somos mais necessários em lugar nenhum. Até os pássaros preferem os seus ninhos.”
Comparação da paisagem de Tchernóbil, antes e depois do acidente.

Em um dos relatos, Svetlana nos apresenta um pai que fugiu da guerra do Afeganistão (1979–1989) e foi para uma região contaminada. Enquanto uns eram retirados de suas casa por conta da radiação, outros temem tanto a guerra que vão de encontra à catástrofe. Para ele nada era pior do que o sofrimento causado pela guerra. Quando questionado sobre o que estava fazendo com seus filhos, levando-os até uma região contaminada, ele disse:  “Eu não estou matando as crianças, estou salvando-as.”

Ser soviético
Assim como em outros livros da autora, o leitor se depara muito com a questão do que é ser soviético, um sentimento um tanto complicado de entender, que perpassa a questão política. Todo o povo soviético era - e ainda é - muito ligado à terra. Se pensarmos antes da União Soviética, aquela região sempre foi predominantemente agrária. 
Por isso, antes de irem defender a URSS, eles acreditavam que defendiam a terra deles. Por outro lado, em muitos relatos os moradores dizem que tinham uma sensação de dever de ajudar a evacuar a região, enterrar objetos, matar animais e fazer tantas outras tarefas delegadas a eles, não importando os riscos que correriam.

“O socialismo soviético. O homem entregava ao Estado a alma, a consciência, o coração, e em troca recebia uma ração.”
“(...) Tchernóbil é também uma grande experiência para o nosso espírito, para a nossa cultura.”

Uma característica do governo soviético, que também aparece em outros livros da autora, é a corrupção enraizada em várias escalas de poder, desde os chefes das aldeias até o mais alto governante.  

“Um presidente de colcoz traz uma caixa de vodca para a unidade dos dosimetristas e pede para que a sua aldeia não seja incluída na lista dos locais a ser evacuados; e outro, também com uma caixa de vodca, pede, ao contrário, que a sua aldeia seja evacuada. Quanto a este, já havia recebido a promessa de um apartamento de três cômodos em Minsk. (...) Enfim, o caos russo de sempre.”

Outra voz solitária
Como o primeiro relato do livro, o último também é de uma mulher que perdeu seu marido devido à catástrofe: Valentina Timofiéevna Apanassiévitch, esposa de um liquidador. É uma outra voz solitária que fala sobre o amor. Valentina ficou ao lado do marido, cuidou dele quando ninguém mais queria se aproximar. Várias vezes ela chamou médicos e enfermeiros, mas eles não passavam da porta, com medo de serem contaminados.

“Falam de Tchernóbil, escrevem sobre Tchernóbil. Mas ninguém sabe o que é. Aqui, agora, tudo é diferente: nascemos e morremos de outro modo. Não mais como os outros. Você me perguntará como morrem depois de Tchernóbil. Um homem que eu amava, que queria de uma maneira que não poderia ser maior se eu mesma o houvesse parido, esse homem se converteu diante dos meus olhos num… num monstro.”

Não é por acaso que Svetlana ganhou o Nobel de Literatura de 2015 pelo conjunto de sua obra. Sem seu trabalho, essas vozes solitárias continuariam silenciadas, tão solitárias quanto já são. Uma parte da História ficaria desconhecida, sem as histórias das testemunhas da catástrofe.

“Destino é a vida de um homem, história é a vida de todos nós. Eu quero narrar a história de forma a não perder de vista o destino de nenhum homem. 
(...)
Algumas vezes, parece que estou escrevendo o futuro...”

A autora
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Svetlana Aleksiévitch nasceu na Ucrânia em 1948. A jornalista e escritora refinou ao longo de sua obra uma escrita única, desenvolvida a partir da observação da realidade e ostentando as melhores qualidades narrativas da tradição da literatura em língua russa. Recebeu em 2015 o Nobel de literatura. Já foram publicados no Brasil, além deste livro, “A Guerra não tem Rosto de Mulher” e “O Fim do Homem Soviético”, todos pela Companhia das Letras.


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